terça-feira, 29 de setembro de 2015

Um canto de pássaro

   O menino espia da janela um pássaro que canta num ramo seco. O momento é sagrado para ambos, para quem espia e para quem canta. É uma tarde de chuva no arabesco de galhos estorricados do sertão. Tudo parece extático ante o esplendor da terra prometida. O menino absorve o instante com a mesma gula ante uma delícia que ele nunca viu. Não importa a fome, a desolação do mundo, a carência de vida. Só lhe importa o canto que sai de dentro da ave.  Ele tenta imaginar com que se parece aquele gorjear  saído de uma garganta de ouro. Mas ele não conhece nada, seus pés descalços viajaram apenas em torno de sua casa ou pelo caminho que leva ao roçado. Então ele se lembrou de um desejo guardado a sete chaves, um sonho nunca realizado, embora ardesse como uma sarça dentro do seu peito. Sentir seus pés agasalhados com meias e dentro de um par de sapatos comprados na feira. Sim, era com isso que o canto daquele pássaro se assemelhava. Um conforto, uma benção, um aconchego que lhe fazia render a alma em mil preces. Aquele canto o acolhia em múltiplas alegrias, transformava seu instante em eterno, saciava sua fome de êxtase, oferecia-lhe um breve ensaio de plenitude. 
   De repente o pássaro voou, o canto desapareceu, perdido entre as gotas de chuva que também sumiam. O menino se viu novamente pobre em sua terra de chão duro, em seu casebre feito de pau e barro. Mas guardou para sempre na memória a impressão de que ser feliz devia ser isso, apenas isso, não mais que isso: um brevíssimo instante no tumultuoso mar da vida.
     
                                                                                 H.C

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