terça-feira, 29 de setembro de 2015

Um canto de pássaro

   O menino espia da janela um pássaro que canta num ramo seco. O momento é sagrado para ambos, para quem espia e para quem canta. É uma tarde de chuva no arabesco de galhos estorricados do sertão. Tudo parece extático ante o esplendor da terra prometida. O menino absorve o instante com a mesma gula ante uma delícia que ele nunca viu. Não importa a fome, a desolação do mundo, a carência de vida. Só lhe importa o canto que sai de dentro da ave.  Ele tenta imaginar com que se parece aquele gorjear  saído de uma garganta de ouro. Mas ele não conhece nada, seus pés descalços viajaram apenas em torno de sua casa ou pelo caminho que leva ao roçado. Então ele se lembrou de um desejo guardado a sete chaves, um sonho nunca realizado, embora ardesse como uma sarça dentro do seu peito. Sentir seus pés agasalhados com meias e dentro de um par de sapatos comprados na feira. Sim, era com isso que o canto daquele pássaro se assemelhava. Um conforto, uma benção, um aconchego que lhe fazia render a alma em mil preces. Aquele canto o acolhia em múltiplas alegrias, transformava seu instante em eterno, saciava sua fome de êxtase, oferecia-lhe um breve ensaio de plenitude. 
   De repente o pássaro voou, o canto desapareceu, perdido entre as gotas de chuva que também sumiam. O menino se viu novamente pobre em sua terra de chão duro, em seu casebre feito de pau e barro. Mas guardou para sempre na memória a impressão de que ser feliz devia ser isso, apenas isso, não mais que isso: um brevíssimo instante no tumultuoso mar da vida.
     
                                                                                 H.C

domingo, 27 de setembro de 2015

Homenagem à lua do dia 27.09.15, esse belo poema musicado

    Lua Vermelha
    Arnaldo  Antunes

Lua vermelha
quase sem amor
minha luz alheia
brilho sem calor

Lua vermelha
branca lua preta
lambe a minha orelha
com a sua cor

Lua vermelha
dez da madrugada
sapos na calçada
de nenhum país

Lua vermelha
noite sem luís
toda sertaneja
eu sempre te quis

Lua vermelha
minha namorada
flor desabrochada
leite de pequim

Lua vermelha
noite que menstrua
lua lua lua
por cima de mim

Lua vermelha
pedra que flutua
que ilumina o poste
que ilumina a rua

Lua vermelha
meia de luís
toda sertaneja
eu sempre te quis

Lua vermelha
ave flecha pluma
pérola madura
sono do dragão

Lua vermelha
só uma centelha
dura enquanto dura
bolha de sabão

Lua vermelha
fora da bandeira
bola japonesa
no céu do sertão

Lua vermelha
negra de luís
toda sertaneja
eu sempre te quis
eu sempre te quis.

sábado, 26 de setembro de 2015

Cecília Meireles

                               ACEITAÇÃO

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
 e sentir passar as estrelas
 do que prendê-lo à terra
 e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
 e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
 que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
 o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,
 nem tu.
Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
 não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Viajante só

Vou seguindo as trilhas
Salpicadas de luz ou sombras
Vagueando entre mil ilhas
Que me acolhem sem delongas.

Sou um eterno peregrino 
Em busca de sonho e de amor
E nem sequer imagino
Que exista guerra e horror.

Às vezes aporto ao que parece
Ser o instante inesperado,
Então a ilusão desaparece
E em absurdos me desespero.

Mas sei que assim é a vida
Num dia se tem no outro se vai
Não adianta manter retida
Uma esperança que se esvai.

É puro sofrer a indecisão
De ter e não ter mais,
É como abrir o coração
Ao gume de mil punhais.

Mas é preciso caminhar
Entre o horror e a guerra
E ainda saber sonhar
Uma ínfima quimera.


                  H.C









segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Vamos falar de um tema controverso

    A visão dos imigrantes fugindo de suas pátrias por total impossibilidade de viver nelas tem cortado o coração de muita gente. Ver aquele amontoado de pessoas num barco inflável ou em barcos a motor que não oferecem a menor segurança, é terrível. Ver crianças como o menino Aylan Shenu, o rosto intacto debruçado entre os seixos da praia,  morto pelo mar que que se negou a acolhê-lo em vida, é cruel. Países de todo o mundo perguntam o que fazer diante de tanta tragédia: recebê-los ou  repudiá-los? Dar-lhes um novo lar para serem mortos nas ruas, talvez a caminho  de um trabalho a duras penas conseguido? A sorte dos fugitivos é um enigma. Escaparam da morte, mas ainda têm sobre suas cabeças milhares de espadas.
  A solução não me parece que seja essa: acolher estrangeiros numa Europa que já não tem terras disponíveis nem cidades desabitadas,  é inviável. O mais justo, e humano, seria se investirem verbas que estão saindo pelo ladrão nos governos de todo o mundo, exigir a renúncia dos governantes dos países ditatoriais e criar uma área nas próprias terras dos refugiados para eles permanecerem em segurança e com a dignidade intacta. Ficar nos seus próprios países é o que todos desejam. Tanto que quando os sobreviventes chegam às fronteiras ficam ali por perto, tentando sentir o cheiro de suas terras trazido pelo vento.
 Vi, no  Fantástico de 13 de setembro p. passado, uma família de quatro pessoas, um casal e dois filhos pequenos, receberem generosamente 10 refugiados em casa deles. Isso não pode dar certo. É comida demais que se precisa. É água demais para ser usada. Esgoto demais para receber tanto detrito. Confusão demais dentro de casa, o que me parece que só pode ser uma situação provisória. Por mais generosidade que exista no coração das famílias que os acolhe, o que se fará depois? Mandá-los de volta ao inferno de onde vieram, sem que nada se tenha feito para garantir segurança ao retorno desses povos? Jamais vou esquecer aquela repórter chamada Petra Laszlo que foi fotografar a entrada dos refugiados sírios na Hungria. Petra deveria restringir-se a registrar imagens dos refugiados, mas, tomada por uma incontida xenofobia, começou a derrubar com as pernas uma criança que veio correndo em sua direção e, depois, derrubou um pai que corria segurando a mão do filho. Outro dia matavam um imigrante numa cidade, com álcool e fósforo.  É isso o que os países vão fazer com os refugiados? Matá-los de outro modo? Humilhá-los como fez dona Petra? É o destino desse povo que preocupa os que têm realmente compaixão pelos seres humanos, mas que, infelizmente, nada podem fazer por eles. Quem pode são os governos, os Estados Unidos que despenderam tanto dinheiro em guerras que não eram suas, com o a do Iraque, do Vietnam e a do Golfo, e tantas outras mais.  Dessa vez,  na terra dos refugiados não tem nada que possa lhes interessar... As nações ricas não gostam da pobreza. E não estão nem aí...
                                 H.C               

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Geraldo Vandré

Vi outro dia uma entrevista com Geraldo Vandré, após 37 anos de silêncio. Surgiu um homem nem amargurado, nem triste. Não ressentido, nem aí para nós, pobres mortais. Um homem seco que sepultou os sentimentos em algum lugar do passado. Que se recusa a cantar no Brasil mas canta na américa espanhola, como ele chama  a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e outros.

 O que fez daquele talento que encantou um maracanã em 1968, repleto, cantando a música "Para Não dizer que Não falei de flores", uma música que todos entenderam que era um canto de guerra  ao momento que se impunha ao Brasil? Certo, foi preso, exilado e, segundo ele, ainda continua exilado.... O que significa entender que os problemas do Brasil não lhe dizem mais respeito. Prefere outros ares, outras culturas a cantar em  território pátrio. Toda a sua verve poética ele reserva para outras plagas. Não compreendemos essa atitude. Porque se o Brasil foi injusto com ele nós não o fomos. Se o Brasil o exilou nós choramos. E quando ele voltou, voltavam com ele nossas esperanças de ter uma voz que diria o que nosso coração sentia. Mas, não. Arredou-se, sumiu, não fez música por muito tempo e quando o fez não foi para nós.

E vê-lo tão caquético, morando sozinho numa dependência da Aeronáutica, fazendo música para a FAB e tocando e cantando  lá dentro mesmo, doeu no coração de quem viu. Aquele homem que gritava ao microfone, jovem, lindo "que esperar não é fazer, quem sabe faz a hora não espera acontecer", deixou de fazer e a hora passou para sempre. Quem sabe se ele tivesse cantado versos
teríamos em quem acreditar e  o seguido na tentativa de ver um Brasil diferente do que vemos.

Só temos a lamentar que um poeta daquela magnitude tenha se extinguido de forma tão desalentadora, sem tempo para despedidas, para nos deixar a lembrança de um ser  que gritou, berrou, amargurou-se e desencantou-se. Com a certeza absoluta de que estaríamos lá, cercando-o, cantando com ele, chorando com ele, mas jamais vivendo esse exilio que ele diz preferir. Autoexílio  não é para quem disse uma vez: " PELOS CAMPOS HÁ FOME - EM GRANDES PLANTAÇÕES - PELAS RUAS MARCHANDO INDECISOS CORDÕES -  AINDA FAZEM DA FLOR SEU MAIS FORTE REFRÃO - ACREDITAM NAS FLORES VENCENDO O CANHÃO."

Não dá para aceitar que um poeta assim tenha se calado...

                                                                                                               H.C