terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Ontem foi o dia do meu aniversário. Esperei que o relógio batesse meia noite e agradeci ao  meu Criador tudo de bom, de sofrido, de positivo e de negativo que me sucedeu até essa data. De tudo, o que me restou foi uma sensação de paz e de felicidade, talvez porque quando meus navios afundaram e vim nadando pelas praias da vida, verifiquei que só tinha um caminho a seguir. Ser feliz porque estava livre. Hoje vivo cercada de música, de flores, de bentevis. As pessoas que travaram meu caminho ficaram para trás e experimento uma liberdade que nunca havia conhecido antes. A toda hora me maravilho com o que a vida me oferece. Os livros que me ensinam a buscar a espiritualidade que condiz com minha alma. As aulas de inglês de todos os dias, o livro de italiano que chegou e espera uma oportunidade. Os amigos que me desejaram, mesmo sem se conhecerem, os mesmos votos de paz, alegria, e concretização dos meus desejos. Como se houvessem previamente combinado. Em uníssono a vida apresentou-se dadivosa. Foi tão bom viver aquele dia, gente ligando do Rio para dizer que me amava e que sentia minha falta. Foi como um dia de cinderela, terminou tarde da noite, ainda com um convite para jantar. Eu me sentia cansada, mas não pude recusar o convite.
 O dia seguinte foi o avesso. Amanheci sem meu sapatinho de cristal, perdido nos degraus do palácio do príncipe inexistente. Começou a labuta da casa, uma lassidão no corpo, mas em meio disso tudo ficou um desejo de que esse 15 de fevereiro permanecesse vivo em minha memória. Estar aqui, neste planeta, é um privilégio, participando de uma ebulição social, econômica e mística que resultará em alguma coisa boa. Pois até as guerras deixam seus benefícios. Sinto-me honrada em estar presente.

domingo, 14 de fevereiro de 2016


                                        BÁRBARA
 

    Meu nome é Bárbara. Tenho trinta anos, mal casada, e acabei de enterrar meu único filho. Estou transida de dor, respirando dentro de um tubo escuro como a morte, sem qualquer esperança, sem acreditar em coisa alguma. Minhas palavras não são dirigidas a amigos, pois não os tenho. Nem a minha mãe nem ao meu pai. Ela era uma tirana, e ele, um alcóolatra inveterado. Também não me dirijo ao meu Ex, pois enquanto ele vivia comigo jamais partilhou de minhas angústias. Tampouco falo com os donos das igrejas, eles apenas escutam o próprio umbigo. Os homens que cruzaram minha vida só deixaram um laivo de dor e muito vazio. Meus vizinhos são peças estranhas que, muitas vezes, viram o rosto para o outro lado, quando passo. Talvez não gostem de mulher divorciada, e eu estou me lixando...

   O único ser que amei no mais profundo de minha alma foi você, filho. Amei seu primeiro choro, seu primeiro sorriso, seus primeiros passos, suas primeiras perguntas, seus abraços, seus olhos de imensa pureza. Você me fez viver meu conto de fadas. Acreditei em tudo em que não mais acreditava só para lhe oferecer um pouco da alegria que eu não possuía. Escondia de você, meu amor, a crueza do meu íntimo devastado, porque queria que você acreditasse na vida, em seus avós, em mim, em seu pai fujão e nos amigos que um dia teria. Sim, é verdade que representei para você.  Por isso, você jamais me viu chorar, jamais soube como eram tristes meus sorrisos, nem que eu carregava um fardo de desencantos e descrença em toda a humanidade. O que vejo ao meu redor são traições, desavenças por quinquilharias, roubos astronômicos dos governantes a quem confiamos o leme do país. Promessas de palanques jamais cumpridas, enriquecimentos pessoais, enquanto o povo conta os centavos, quando os tem, a fim de sobreviver. Mas você, filho da minha alma, encantou-me durante os seis anos em que viveu ao meu lado. Suportamos com bravura as asperezas decorrentes do inesperado abandono de seu pai. Tínhamos um ao outro e isso mitigava o sofrimento causado por ele. Quantas vezes tive que sustentar as lágrimas e o ódio para lhe explicar que algumas pessoas vêm e vão, como cometas a cruzar o firmamento. E que, mesmo assim, a vida podia ser maravilhosa... Afirmava-lhe que eu jamais deixaria você, nem que fosse pelo rei da Escócia. Naquele instante seus olhos brilhavam e você indagava quem era esse rei. Então eu contava mil histórias sobre esse ser imaginário, dizia que era muito belo e rico, mas que se ele me oferecesse todas as joias de seu reinado, colocasse uma coroa de diamantes sobre minha cabeça, eu, ainda assim, preferia você. Então você sorria, comprazendo-se com minha escolha. Gostava de vê-lo em sua roupinha de marinheiro, ou tomando banho de chuva, ou arrastando pela casa seus brinquedos barulhentos. Sim, filho, você valia mais para mim do que todos os tesouros da terra. Meu amor por você era maior que os mares e brilhava mais que as estrelas do firmamento. Você não duvidava de mim. Acreditava em tudo o que eu lhe dizia, porque nunca o traí, nunca o abandonei nem deixei de escutar seus queixumes de criança.

   Agora, sem você, estou perdida. Sinto que minha vida acabou no momento em que o deixei sob a pedra fria. Estou sozinha na casa onde vivemos e assim posso gritar, curvar-me até o chão, arrancar os cabelos, sentir o coração se despedaçando dentro do peito e pensar: pronto. É agora que me vou também. Paro no meio da casa, descabelada, os olhos fitos no nada, as mãos crispadas à espera que a morte tenha piedade de mim. Espero cinco, dez, vinte minutos e nada. Então recomeço a gritar, a rasgar  a roupa, a morrer por conta própria, matando tudo que possa ter vida dentro de mim. Nego-me água, comida, sono e esmago qualquer sentimento de redenção que possa me retribuir um pouco de paz. Nem suas lembranças, filho, me servem de nada. Não me deixarei pensar em você lindo, saudável, saltando na cama, resmungando para tomar banho, os olhos quase fechados e você teimando em não dormir para não perder nada da vida. Acordando bem cedo e vindo para minha cama me despertar com beijos. Não! Não pensarei em nada disso. Não tenho mais memória, sou como aquelas múmias que eu lhe dizia que existiam no Egito. Há uma porção de panos me envolvendo a cabeça, me cingindo o peito, os ossos da bacia, as pernas, os pés. Dentro de mim estou oca. Tiraram-me tudo porque me tiraram você.

   Não posso perguntar à vida a razão disso tudo porque a vida não existe. É pura ilusão. Não posso perguntar à humanidade porque ela está mais interessada na sua própria sobrevivência, no que vai comer no almoço e digerir no jantar.  Por isso decidi perguntar ao único que dizem saber tudo, aquele que fez este e os outros mundos, fez meu corpo e o seu, levou o seu para o céu e deixou o meu no inferno. Ele que, segundo dizem, conhece todas as respostas, todos os nossos pensamentos. É com ele que quero falar antes que a loucura tome conta de mim.  Mas... onde ele se encontra? Onde? Onde?... Dizem que dentro de mim, mas me perdi de mim mesma...

Fernando Pessoa

Do Livro Desassossego:


 Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos. Atingirás assim o ponto da abstenção sonhadora, onde os sentidos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns dos outros, os ódios sabem a amores, os vigores a tédios, as coisas concretas a abstratas, e as obscuras a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e se confunde.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A Arte

   O mundo demonstra que sempre foi o mesmo, desde o princípio. Pelo que se pode constatar, sempre houve violência, política desrespeitando os interesses do povo, subserviência, dominação daqueles que possuem o poder nas mãos. Se observarmos a história veremos coisas terríveis e outras magníficas advindas do homem. As terríveis foram a Inquisição, a primeira guerra mundial, a segunda com o Holocausto, apenas como exemplos. Dentre as magníficas, o aparecimento dos filósofos, do maior gênio de todos os tempos, Leonardo Da Vinci, da literatura de Camões, Dante, Pe. Antônio Vieira e outros, bem assim os grandes compositores da música erudita.
  Hoje ouvi o Concerto nº 7, para piano e orquestra, de Bach, e experimentei uma emoção que me tomou por inteiro, misturada à gratidão por ele ter nascido, um dia, e criado obras tão grandes que serviram de ensinamento aos compositores posteriores. E compreendi que de tudo que a humanidade fez, a arte foi que prevaleceu  como saneadora da alma humana, como lembrete para o qual fomos criados. Não fosse a arte, seríamos apenas homens que contam moedas, como diz Exupéry no "O Pequeno Príncipe".  Toda a diferença dos homens reside na grandeza da arte. É ela que toca nossos mais nobres sentimentos e nos deixa, de repente, com vontade de sermos melhores. Ouvir um Concerto de Bach, uma Sonata de Mozart, um Prelúdio de Chopin é tocar as estrelas, é sair do disse-que-me-disse cotidiano, é não se importar com nada além do lugar para onde a música nos transporta. A arte é quem ainda traz movimentação às camadas mais sobrenaturais da Terra, porque tudo o mais empobreceu, degenerou-se. Não fosse por ela talvez não tivéssemos nenhuma saída.
  O amor também poderia ter sido outra grande arma contra a sedimentação humana. Mas o amor também se perdeu dentro de si próprio, tornando-se o labirinto mais complicado, misterioso e sofrido dos homens. De intacto mesmo, só restou a arte. Com sua eterna pureza, sua capacidade de tocar  os pontos mais sensíveis de nossa alma, de saciar nossa dor e acordar nosso êxtase, ela nos fornece o alimento vital que os homens esqueceram de preservar ao longo dos tempos.  A arte nos faz lembrar que fomos feitos para coisas maiores e nos aproxima  da nossa verdadeira essência espiritual, tão esquecida no meio de tantas matanças, guerras, terrorismo e ausência completa de compaixão. Países abrindo as portas a povos de outros países que, prevalecidos dessa boa vontade, matam centenas de pessoas numa única noite. E por aí vai mostrando o que somos na realidade.  Mas sempre existirá Bach com seus eternos concertos à espera de serem ouvidos e  mudar a essência dos homens.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

15 de novembro - O Brasil antes e depois de República


                     
 

     Ó Pátria amada! Teu berço era uma vastidão de selvas intocadas, crivadas de rios cristalinos e profundos lagos de águas mansas. Opulenta de ouro e prata! Ninguém nasceu mais rica e livre do que tu. Em tua face pura de menino travesso dançavam as fadas e os elfos  ao som da sinfonia dos pássaros e dos córregos. Nenhum país viu sol mais fúlgido nem semelhante céu de anil. Éramos um povo heroico desafiando a própria morte para te embalar em sonho intenso de amor e de esperança. Nenhum rumor de passos inimigos turbava tuas noites eternas. Gigante pela própria natureza, belo e forte eras, defendendo teu povo com tuas torres encrustadas nos montes. Rescendias a flores silvestres misturadas a jasmim e alecrim. Teu corpo impávido e colosso sobrepujava o continente onde nasceste. Ninguém te dominava. Conhecias apenas os passos de uma nação que se aquecia nas fogueiras e caminhava solto pelas matas, cabelo ao vento, pés descalços,  o corpo nu. A fronte, coroada de ramos e penas coloridas, fitava a glória do futuro. Nenhuma clava era mais forte que suas setas.

     Depois, aportaram uns homens barbudos, acompanhados de outros, vestidos de preto da cabeça aos pés, com algo desconhecido pendurado no pescoço. Os primeiros cobiçavam nossas riquezas minerais, o segundo ensinava os nativos a adorar duas varinhas cruzadas. Com picaretas, os barbudos escavaram tuas serras até os ossos, deixaram tuas vergonhas à vista e teus úteros dilacerados. Com golpes de facão tosaram tua imensa cabelereira verde, tão densa e escura que se tornava negra aos pés do chão, onde os raios solares não se atreviam a entrar. Tornaste-te prisioneira de um país de além-mar e teu povo se tornou cativo. Desde então, empobreceste até te tornar o que és. De mentira em mentira, de saque em saque, já não se pode dizer que és a terra mais garrida, nem que teus campos têm mais vida. Hoje somos um povo vencido, sem coragem de lutar até a morte. Fugimos à luta porque nos faltam esperanças. A seara mais fértil do mundo nega o pão aos próprios filhos. Onde havia fartura hoje impera a fome. Já não podemos te chamar terra dourada porque teu trigo se tornou negro e amargo. Ainda assim te amamos. Não temos esperança, mas não perdemos a fé.  Sonhamos que a chaga do teu peito seja cicatrizada por homens audazes que amem teu chão e teu povo e faça renascer em nós o brado retumbante que te deu a liberdade em breve instante, às margens de um riacho que transformaram em lixo.

     Ó Terra idolatrada! Como dói o peito de quem te escreve! Como te salvar dos ávidos de poder, do que se matam por mais um pedacinho de ti, dos que empederniram o coração ante o clamor das massas, dos indiferentes à fome dos pobres, dos que passam ao largo da ignorância dos analfabetos, dos que não enxergam o abandono da infância, a carência dos jovens, o desamparo da velhice? Abri os olhos, vós que governais este povo que instaurou a forma republicana presidencialista, derrubando a monarquia e pondo fim à soberania dos Bragança.  Se não podeis fazer nada, pelo menos deixai-nos voltar ao tempo dos índios, saciados, usando tanga no meio da mata virgem, adorando o sol e a lua e entoando canções em tupi-guarani. Já que não temos nada, dai-nos o direito de voltar à inocência.

 

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Mister Blue

                                           

    Numa cidade localizada em algum lugar deste planeta, numa noite quente de verão e de estrelas rutilantes, nasceu uma criança do sexo masculino a quem deram o nome de HélderSebastião, em homenagem a um dos maiores santos nascidos na mesma terra. 
    Com o passar dos anos, o garoto foi demonstrando uma personalidade conciliadora, um jeito próprio e pouco comum de permanecer atento às necessidades dos que o rodeavam. Se, por exemplo, um dos irmãos não sabia a lição da escola, ele deixava de lado suas brincadeiras favoritas para ajudá-lo. Se os pais se desentendiam, ele encontrava um meio de dirimir as rusgas entre os dois, ora os estimulando a falarem sobre eles mesmos, ora ressaltando que eram os melhores pais do mundo e que os filhos se sentiam felizes por tê-los como exemplos. Por essa época ele já tinha uns doze anos. Sempre que se apresentava uma situação em que alguém necessitasse de algo, ele surgia e, à sua maneira, tentava dirimir a aflição do outro. Se um colega de escola não podia comprar um livro para estudar as lições, ele tirava de sua mesada o pouco que ganhava, ia à livraria e explicava ao livreiro que só possuía aquela quantia de dinheiro para resolver o problema de um colega. Às vezes, ele permanecia na livraria uma tarde inteira, tentando convencer o homem a vender o livro em prestações que ele próprio assumia o compromisso de pagar. Quando seus argumentos não davam resultado, ele ia a uma gráfica, mandava copiar as principais lições do livro para si e oferecia o original para o colega.
    Hélder estava sempre de bem com a vida, e quando alguém lhe perguntava como andavam as coisas, ele respondia: “tudo azul”. O professor de inglês da escola observou que sempre que alguém ou ele mesmo indagava se ele estava bem, a resposta era sempre a mesma: tudo azul. Daí começou a chamá-lo de Mr. Blue, apelido que os demais professores e alunos da escola adotaram com carinho, embora ele não tenha se envaidecido com o codinome, porque a bondade para ele era algo natural, sem afetação.
   Mr. Blue sempre tinha um tempinho, depois da aula, para a explicação de uma matéria a um colega, (embora a fome gritasse forte), ou para consolar um garoto que chorava num canto da sala porque lhe haviam roubado os lápis.
  Assim, nosso jovem garoto atravessou a adolescência e completou quinze anos. Era um rapaz desinibido, forte, de passos largos, os pés um pouco abertos, jogando o corpo de um lado para o outro, o andar típico dos que   vivem em paz com a vida.
    O rapaz não era bonito nem feio, mas sua alma parecia iluminá-lo por fora e seus pequenos senões físicos se obscureciam quando ele sorria. Todos o amavam. Em casa era o preferido, na escola o mais procurado, entre os amigos o mais festejado.
   Mr. Blue via os defeitos dos seus semelhantes como se passasse por dentro de uma nuvem, sem julgar coisa alguma, pois sua noção de humanidade não incluía julgamentos sobre os erros do próximo. Enfim, ele compreendia quando um amigo não lhe pagava o dinheiro emprestado ou lhe negava a palavra como forma de se defender da trapaça. Parece que ele havia nascido para compreender tudo e todos.
   Mr. Blue era um dessas pessoas que resguardaram a inocência original, sendo incapaz de uma maledicência ou de uma grosseria. Às vezes, algum gaiato o chamada de poeta, profético, iluminado. Mas ele não levava em consideração nada do que diziam dele, porque sem nenhum esforço ele era assim. Os pais tinham orgulho dele, sempre cordato e jamais reclamando de mais uma tarefa dentro de casa, como cuidar dos irmãos menores, enquanto a mãe preparava o jantar.
  Lúcia, a irmã de quatro anos, não suportava ficar sem a presença de Hélder. Vivia em seu encalço, pedindo-lhe os braços, querendo colo e só queria comer quando ele estava perto. Se ele se afastava, ela saía por dentro da casa repetindo seu nome até encontrá-lo no quarto dos fundos, brincando com seus jogos eletrônicos. E continuando a jogar, ele vigiava a irmã para evitar que ela não aprontasse alguma. Era um olho no jogo e o outro em Lúcia.  
   Aos vinte anos entrou na faculdade de psicologia, para compreender melhor a alma humana. Aos vinte e cinco casou-se com uma colega e tiveram um filho chamado Marcos.
     A cidade onde M. Blue nascera, crescera e se casara, era uma sociedade comunitária. Todos haviam aprendido um pouco a dar, trocar, ajudar e resolver os problemas uns dos outros.
   Mr. Blue terminou a faculdade e foi convidado para trabalhar numa clínica e fazer o que mais gostava: ajudar as pessoas. Agora, com tantas técnicas, era-lhe mais fácil ouvir e aconselhar quem dele necessitasse. Também dava assistência psicológica a alunos de uma escola, três vezes por semana.
   Tudo parecia perfeito na vida desse rapaz.
   Certo dia, o Diretor da escola, Sr. Jarbas, pediu-lhe para comparecer à diretoria, no final do expediente. Às dezoito horas, ele pegou seus livros, seu paletó e se dirigiu ao gabinete do diretor.
    O Sr. Jarbas lhe explicou que infelizmente o assunto não era agradável de tratar, mas que se fazia necessário esclarecer. Meio confuso, o rapaz perguntou de que se tratava. 
 — É algo que andam falando de você, Hélder.
  — Mas, o que é exatamente?  
  — Eu não posso dizer, fui instruído apenas para lhe dizer que você não deverá frequentar a escola até que tudo fique esclarecido.
  — Mas de que estou sendo acusado? Tenho direito de saber. 
 — Vá para sua casa e eu resolvo tudo por aqui.
  — O senhor não acha que eu tenho direito de saber do que se trata?
   — As coisas estão muito confusas no momento, Hélder. Nem sei por onde devo começar a enfrentar esse episódio.  Só sei que sua presença na escola iria tumultuar mais ainda as coisas. Por isso lhe peço que se dê um tempo, fique com sua família. 
  — E o que o senhor sugere que eu diga em casa? O que devo dizer à minha mulher, ao meu filho, à minha família? 
 Diga-lhe que está com estafa e necessita de repouso.
   — O senhor está pedindo que eu invente uma história para enganar minha família? Quero a verdade, Sr. Jarbas, apenas a verdade.  Estou sendo acusado de alguma coisa. Quero saber do quê. 
    — Um aluno ou aluna andou se queixando de algumas atitudes de sua parte.
    — Que atitudes? Quem falou?
    — Não me deram permissão para revelar o nome da pessoa.
    — O que essas pessoas falaram?
    — É apenas uma pessoa.
    — O que essa pessoa disse?
    — Vá para casa rapaz, e espere a decisão do conselho.
    — Todo mundo sabe o que houve só eu não? Acha isso justo?
    — Depois que nos reunirmos e tomarmos uma decisão você será chamado.
        Mr. Blue foi para casa. Pela primeira vez em sua vida ele estava pesaroso.  Não sabia o que dizer à sua mulher, ao filho de oito anos e aos seus pais.
      Falou primeiramente com a mulher Leda sobre a estranha conversa com o Sr. Jarbas. Não pode lhe dar detalhes porque não sabia de nada. Disse apenas que o acusavam de algo, mas ele nada tinha feito de errado.  Sua mulher o ouviu e disse que pela manhã iria à escola saber o que eles não esclareceram. Hélder avisou que não seria de bom tom, pois ele fora avisado de que deveria se manter longe da escola.

    — Você brigou com algum paciente, Hélder?    
— Não, você sabe que não brigo com ninguém;
    — O Sr. Jarbas comentou que falaram coisas a meu respeito.  
  — Que tipo de coisas?
     — Não sei. Não tenho a mínima ideia.  Estou apenas repetindo o que ele disse.
    — Hélder, o mundo enlouqueceu? Como podem fazer isso com um homem como você, que só ajuda, só ouve, só aconselha e vive resolvendo problemas de todo mundo?  Amanhã faremos uma reunião aqui em casa: seus pais, seus irmãos, eu e o Marcos.
    — O Marcos?
    — Sim, antes que ele saiba no colégio o que estão dizendo do pai dele, é melhor lhe prevenir.
    — Tem razão. Você chama todo mundo, então.
     No dia seguinte toda a família de Hélder estava reunida. Leda tomou a palavra e explicou o que não sabia direito, mas tudo indicava que haviam feito uma coisa horrível com seu marido. E o pior: não explicaram mais nada.
   — Coisas de que tipo? O que eles comentaram? Perguntou aflito o pai de Hélder:
   Era essa a maneira de agradecer por tudo que ele faz? De quem partiu esse absurdo?

  — Não me informaram nada, mãe. Apenas disseram que eu permanecesse distante da escola por uns tempos. Acho que até ser apurado.
  — Quem vai apurar?
  — A princípio, os diretores da escola. É tudo que sei.
  — Você tem ideia de quem possa ter começado essa história?
  — De jeito nenhum. Ninguém me informou nada. Sei do caso tanto quanto vocês.
 Eu os chamei aqui, disse Leda, para que tomemos uma decisão e façamos alguma coisa.
  — Vamos dar parte à polícia antes que eles deem.
  — Acho que seria precipitado. Disse Hélder. É como pôr a carroça antes dos bois. E se for uma bobagem?

   — Então, o que podemos fazer?

   — Eu vou lá falar com o diretor da escola, disse o pai de Hélder. Vou pedir para tomar parte dessa reunião que vai haver.

   — Pai, só pode participar dessa reunião os membros do colegiado.

    — Então vou falar com o diretor dessa escola. Alguma coisa tem que ser feita.

   — Acho melhor esperarmos em que vai dar. Então tomaremos as decisões. Ficaremos de sobreaviso. Nada podemos fazer por enquanto. Eu e Leda achamos que vocês tinham que tomar conhecimento do que está se passando.

 — Então, só nos resta esperar. Você ficará bem, filho? Perguntou a mãe de Hélder.

  — Não sei ainda como ficarei, mãe. A coisa toda é muito absurda e repentina. Estou atordoado. Não sei o que pensar disso tudo.

  — Vá descansar, filho, e procure não pensar muito sobre essa história. Eles mesmos vão chegar à conclusão de que cometeram um erro. Você vai ver.

    Despediram-se e foram para suas casas. Mas Hélder não conseguia dormir. E, pela manhã, havia chegado à conclusão de que deveria ir à escola, embora desacatando as ordens recebidas.

   Tomou seu café matinal, arrumou-se, pegou sua pasta de livros e se dirigiu ao estabelecimento escolar, mesmo que não fosse dia de atendimento aos alunos.

     Ali chegando, não avistou nenhum dos seus colegas de magistério. Saiu procurando por eles e encontrou todos na sala da diretoria, a portas trancadas. Soube que eram eles porque escutou suas vozes. Bateu na porta e um deles veio ver quem era. Ao se deparar com Hélder perguntou-lhe se ele havia esquecido de que não deveria comparecer à escola.  Hélder o empurrou para um lado, entrou na sala e se dirigiu aos colegas:

 — Estou aqui porque tenho direito de saber o que estão dizendo de mim, e quem disse. Vocês devem compreender que minha situação é difícil: estou sendo acusado de algo que não sei o quê, por alguém que não imagino quem seja.  Não acho justo fazer isso com um ser humano. É crueldade. Pela primeira vez na vida estou diante de sentimentos humanos que eu não conhecia. Estou mais perplexo do que vocês.

  — Mesmo assim, professor Hélder, permaneça fora do âmbito desta escola até tudo ser resolvido. Vamos conversar com a pessoa que fez a denúncia, depois ouviremos o senhor.

    Hélder retornou à sua casa, mais triste e mais intrigado. Depois do almoço ele foi à clínica onde trabalhava.

   Três dias depois ele recebeu um telefonema informando-lhe que deveria comparecer à escola na manhã do dia seguinte. E para lá ele foi.

    Encontrou pais de alunos e todo o corpo docente reunidos na sala da diretoria. Ao entrar no recinto sentiu sobre ele olhares hostis. A diretora fez uso da palavra para explicar a razão de estarem reunidos. Uma aluna havia dito que o professor Hélder havia mostrado suas partes íntimas a ela...

    — Pois chame essa aluna aqui e eu quero ver se ela vai repetir esse absurdo, disse Hélder.

     Não podemos pressionar a criança, professor. Vamos pedir as autoridades policiais para fazerem uma investigação. Então a menina será ouvida e, posteriormente, o senhor. 

  — Os senhores acreditam que sou capaz de uma atitude dessas?

  — Vamos esperar o resultado da investigação, professor. Até lá permaneça distante da escola. É uma ordem. 

    Todos saíram e Hélder permaneceu sentado. Esperou o retorno da diretora e lhe explicou que tudo aquilo não passava de um absurdo e que ele não estava sabendo ligar com a situação. Sentia-se deprimido e magoado com todos por imaginarem que ele fosse capaz de fazer tal coisa. A diretora ponderou que os fatos tinham de ser apurados, para seu próprio bem. Tudo o que ele tinha a fazer era esperar.

   Hélder saiu da sala, mas não se sentia com ânimo de voltar para casa, nem ir à clínica, nem ouvir o telefone tocando e sua mulher tentando acalmar seus pais. Foi caminhando sem rumo e se deparou com uma praça onde havia alguns bancos desocupados. Sentou-se num deles e ficou mergulhado em pensamentos sombrios. Pela primeira vez em sua vida parecia estar perdendo a crença na humanidade. Experimentou uma espécie de mágoa dirigida a todos e a ninguém especificamente. Estava confuso, seus sentimentos feridos faziam doer sua alma. Dúvidas começaram a inundar seu ser.  Se o erro fosse esclarecido, ele teria condição de continuar a olhar cada um dentro dos olhos, sem ver a perfídia em todos? E se, mesmo depois do caso resolvido, ele não pudesse ser o mesmo de antes? E os outros? Acreditariam no resultado da perícia ou sempre haveria de pairar uma dúvida? Uma calúnia deixa sempre um rastro de incertezas, um lodo, uma podridão naquele que foi caluniado.

     Hélder pensou em desaparecer, em fugir para outro Estado, morar no Amazonas junto com os índios, nunca mais vez nenhum daqueles rostos que vira àquela manhã, cada um deles expressando uma sentença. Não poderia suportar viver assim. Sua vida estava acabada, sem escapatória. Assim pensando, lágrimas começaram a cair de seus olhos, enquanto o horror crescia dentro dele. Nunca mais ele seria o mesmo. Nunca mais olhariam para ele sem aquela suspeita corrosiva. O que Leda pensava dele, lá no fundo de sua alma? Como ele poderia saber? Antes sabia tudo sobre ela, bastava um olhar e tudo estava ali, dito, esclarecido, sem suspeitas. Essa história o fizera perder as melhores coisas da vida: a confiança que depositaram nele e a fé que o fazia se atirar de corpo e alma para ajudar o outro. Era como se ele estivesse morrendo, à medida que a podridão humana invadia seus poros, com a fúria de uma avalanche. 

    Hélder passou a tarde no banco da praça e não sentia nenhuma vontade de ir a qualquer lugar.  Sua casa perdera o encanto, o brilho. Era agora um espelho quebrado.  Dirigiu-se a uma igreja na tentativa de conversar com um padre, mas encontrou a igreja fechada. Não queria voltar para sua casa, nunca mais. Todos os seus sonhos morriam um depois do outro e ele se viu como uma árvore oca, que já não serve para nada.

    Um imenso desespero se aposseou dele, certo de que dali e cem anos as pessoas ainda o veriam como um canalha. Não poderia suportar isso. Faltava-lhe a coragem de ser bom novamente. Deveria nunca ter compreendido ninguém. Se crucificaram um homem que viera à terra apenas para trazer o bem à humanidade, o que não fariam com ele, pobre mortal, os amigos lhe virando as costas, passando por ele como se não o conhecesse?

   Hélder levantou-se do banco e continuou sua jornada sem rumo. Lembrou-se do mar e foi na direção dele. Já era noite, ele não sentia forme, nem cansaço. Só um imenso vazio. Queria continuar andando, andando, sem voltar jamais. Nunca mais queria ver um professor ou um aluno daquela escola. Iria em direção ao mar porque isso o fazia se distanciar do seu mundo.

   Chegou à praia e ficou ouvindo o rumor das vagas. A noite estava escura, sem luar, sem estrelas. Tirou os sapatos e molhou os pés. A água estava cálida, acolhedora. Nada o recriminava ali. Pelo contrário, as ondas o abraçavam como uma mulher desejosa de ser amada. Mr. Blue experimentou uma enorme vontade de se envolver nas ondas, deitar-se nelas, ir para onde elas quisessem levá-lo. Em seu desespero desejou atravessar o oceano e esbarrar no velho mundo, como um mero desconhecido ou alguém que acabara de nascer. A esse pensamento seu corpo foi penetrando na escuridão do mar. Caminhou ainda mais. Ele não sentiu nenhum medo. A água batia-lhe na cintura. Avançou mais. Agora, ela alcançava seu dorso. Ele queria mais. Caminhou por entre ondas turbulentas sem olhar nem uma vez para trás. Seu rosto inundou-se de água salgada. Ele recebia a aspereza do mar como um outro carinho. Seu destino era seguir. Talvez encontrar do outro lado o oposto do que estava vivendo. As águas salgadas lhe molharam o rosto. Ele prosseguiu. O mar era uma imensa cama e ele se sentia cansado demais para retornar a algum lugar. De repente, ondas gigantescas tragaram seu corpo e ele se deixou ir para as profundezas escuras. Experimentou uma indizível paz. Tudo ficara para trás. Mr. Blue não mais existia. Sob as ondas havia apenas Hélder.

No dia seguinte, o corpo de Mr. Blue ainda não tinha surgido das profundezas que o haviam tragado e já se desvendava o absurdo de uma história inventada por uma criança tomada por uma crise de ciúmes.