https://www.youtube.com/watch?v=3Aduf5JGCNQ
Muito lindo!!!
Blog Literário Gaia
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
terça-feira, 16 de fevereiro de 2016
Ontem foi o dia do meu aniversário. Esperei que o relógio batesse meia noite e agradeci ao meu Criador tudo de bom, de sofrido, de positivo e de negativo que me sucedeu até essa data. De tudo, o que me restou foi uma sensação de paz e de felicidade, talvez porque quando meus navios afundaram e vim nadando pelas praias da vida, verifiquei que só tinha um caminho a seguir. Ser feliz porque estava livre. Hoje vivo cercada de música, de flores, de bentevis. As pessoas que travaram meu caminho ficaram para trás e experimento uma liberdade que nunca havia conhecido antes. A toda hora me maravilho com o que a vida me oferece. Os livros que me ensinam a buscar a espiritualidade que condiz com minha alma. As aulas de inglês de todos os dias, o livro de italiano que chegou e espera uma oportunidade. Os amigos que me desejaram, mesmo sem se conhecerem, os mesmos votos de paz, alegria, e concretização dos meus desejos. Como se houvessem previamente combinado. Em uníssono a vida apresentou-se dadivosa. Foi tão bom viver aquele dia, gente ligando do Rio para dizer que me amava e que sentia minha falta. Foi como um dia de cinderela, terminou tarde da noite, ainda com um convite para jantar. Eu me sentia cansada, mas não pude recusar o convite.
O dia seguinte foi o avesso. Amanheci sem meu sapatinho de cristal, perdido nos degraus do palácio do príncipe inexistente. Começou a labuta da casa, uma lassidão no corpo, mas em meio disso tudo ficou um desejo de que esse 15 de fevereiro permanecesse vivo em minha memória. Estar aqui, neste planeta, é um privilégio, participando de uma ebulição social, econômica e mística que resultará em alguma coisa boa. Pois até as guerras deixam seus benefícios. Sinto-me honrada em estar presente.
O dia seguinte foi o avesso. Amanheci sem meu sapatinho de cristal, perdido nos degraus do palácio do príncipe inexistente. Começou a labuta da casa, uma lassidão no corpo, mas em meio disso tudo ficou um desejo de que esse 15 de fevereiro permanecesse vivo em minha memória. Estar aqui, neste planeta, é um privilégio, participando de uma ebulição social, econômica e mística que resultará em alguma coisa boa. Pois até as guerras deixam seus benefícios. Sinto-me honrada em estar presente.
domingo, 14 de fevereiro de 2016
BÁRBARA
Meu nome é Bárbara.
Tenho trinta anos, mal casada, e acabei de enterrar meu único filho. Estou
transida de dor, respirando dentro de um tubo escuro como a morte, sem qualquer
esperança, sem acreditar em coisa alguma. Minhas palavras não são dirigidas a
amigos, pois não os tenho. Nem a minha mãe nem ao meu pai. Ela era uma tirana,
e ele, um alcóolatra inveterado. Também não me dirijo ao meu Ex, pois
enquanto ele vivia comigo jamais partilhou de minhas angústias. Tampouco falo
com os donos das igrejas, eles apenas escutam o próprio umbigo. Os homens que
cruzaram minha vida só deixaram um laivo de dor e muito vazio. Meus vizinhos
são peças estranhas que, muitas vezes, viram o rosto para o outro lado, quando
passo. Talvez não gostem de mulher divorciada, e eu estou me lixando...
O único ser que amei no
mais profundo de minha alma foi você, filho. Amei seu primeiro choro, seu
primeiro sorriso, seus primeiros passos, suas primeiras perguntas, seus
abraços, seus olhos de imensa pureza. Você me fez viver meu conto de fadas.
Acreditei em tudo em que não mais acreditava só para lhe oferecer um pouco da
alegria que eu não possuía. Escondia de você, meu amor, a crueza do meu íntimo
devastado, porque queria que você acreditasse na vida, em seus avós, em mim, em
seu pai fujão e nos amigos que um dia teria. Sim, é verdade que representei
para você. Por isso, você jamais me viu
chorar, jamais soube como eram tristes meus sorrisos, nem que eu carregava um
fardo de desencantos e descrença em toda a humanidade. O que vejo ao meu redor
são traições, desavenças por quinquilharias, roubos astronômicos dos
governantes a quem confiamos o leme do país. Promessas de palanques jamais
cumpridas, enriquecimentos pessoais, enquanto o povo conta os centavos, quando
os tem, a fim de sobreviver. Mas você, filho da minha alma, encantou-me durante
os seis anos em que viveu ao meu lado. Suportamos com bravura as asperezas
decorrentes do inesperado abandono de seu pai. Tínhamos um ao outro e isso
mitigava o sofrimento causado por ele. Quantas vezes tive que sustentar as
lágrimas e o ódio para lhe explicar que algumas pessoas vêm e vão, como cometas
a cruzar o firmamento. E que, mesmo assim, a vida podia ser maravilhosa...
Afirmava-lhe que eu jamais deixaria você, nem que fosse pelo rei da Escócia.
Naquele instante seus olhos brilhavam e você indagava quem era esse rei. Então
eu contava mil histórias sobre esse ser imaginário, dizia que era muito belo e
rico, mas que se ele me oferecesse todas as joias de seu reinado, colocasse uma
coroa de diamantes sobre minha cabeça, eu, ainda assim, preferia você. Então você
sorria, comprazendo-se com minha escolha. Gostava de vê-lo em sua roupinha de
marinheiro, ou tomando banho de chuva, ou arrastando pela casa seus brinquedos
barulhentos. Sim, filho, você valia mais para mim do que todos os tesouros da
terra. Meu amor por você era maior que os mares e brilhava mais que as estrelas
do firmamento. Você não duvidava de mim. Acreditava em tudo o que eu lhe dizia,
porque nunca o traí, nunca o abandonei nem deixei de escutar seus queixumes de
criança.
Agora, sem você, estou
perdida. Sinto que minha vida acabou no momento em que o deixei sob a pedra
fria. Estou sozinha na casa onde vivemos e assim posso gritar, curvar-me até o
chão, arrancar os cabelos, sentir o coração se despedaçando dentro do peito e
pensar: pronto. É agora que me vou também. Paro no meio da casa, descabelada,
os olhos fitos no nada, as mãos crispadas à espera que a morte tenha piedade de
mim. Espero cinco, dez, vinte minutos e nada. Então recomeço a gritar, a
rasgar a roupa, a morrer por conta própria, matando tudo que possa ter vida
dentro de mim. Nego-me água, comida, sono e esmago qualquer sentimento de
redenção que possa me retribuir um pouco de paz. Nem suas lembranças, filho, me
servem de nada. Não me deixarei pensar em você lindo, saudável, saltando na
cama, resmungando para tomar banho, os olhos quase fechados e você teimando em
não dormir para não perder nada da vida. Acordando bem cedo e vindo para minha
cama me despertar com beijos. Não! Não pensarei em nada disso. Não tenho mais
memória, sou como aquelas múmias que eu lhe dizia que existiam no Egito. Há uma
porção de panos me envolvendo a cabeça, me cingindo o peito, os ossos da bacia,
as pernas, os pés. Dentro de mim estou oca. Tiraram-me tudo porque me tiraram
você.
Não posso perguntar à
vida a razão disso tudo porque a vida não existe. É pura ilusão. Não posso
perguntar à humanidade porque ela está mais interessada na sua própria
sobrevivência, no que vai comer no almoço e digerir no jantar. Por isso decidi perguntar ao único que dizem
saber tudo, aquele que fez este e os outros mundos, fez meu corpo e o seu,
levou o seu para o céu e deixou o meu no inferno. Ele que, segundo dizem,
conhece todas as respostas, todos os nossos pensamentos. É com ele que quero
falar antes que a loucura tome conta de mim.
Mas... onde ele se encontra? Onde? Onde?... Dizem que dentro de mim, mas
me perdi de mim mesma...
Fernando Pessoa
Do Livro Desassossego:
Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos. Atingirás assim o ponto da abstenção sonhadora, onde os sentidos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns dos outros, os ódios sabem a amores, os vigores a tédios, as coisas concretas a abstratas, e as obscuras a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e se confunde.
Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos. Atingirás assim o ponto da abstenção sonhadora, onde os sentidos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns dos outros, os ódios sabem a amores, os vigores a tédios, as coisas concretas a abstratas, e as obscuras a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e se confunde.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2015
A Arte
O mundo demonstra que sempre foi o mesmo, desde o princípio. Pelo que se pode constatar, sempre houve violência, política desrespeitando os interesses do povo, subserviência, dominação daqueles que possuem o poder nas mãos. Se observarmos a história veremos coisas terríveis e outras magníficas advindas do homem. As terríveis foram a Inquisição, a primeira guerra mundial, a segunda com o Holocausto, apenas como exemplos. Dentre as magníficas, o aparecimento dos filósofos, do maior gênio de todos os tempos, Leonardo Da Vinci, da literatura de Camões, Dante, Pe. Antônio Vieira e outros, bem assim os grandes compositores da música erudita.
Hoje ouvi o Concerto nº 7, para piano e orquestra, de Bach, e experimentei uma emoção que me tomou por inteiro, misturada à gratidão por ele ter nascido, um dia, e criado obras tão grandes que serviram de ensinamento aos compositores posteriores. E compreendi que de tudo que a humanidade fez, a arte foi que prevaleceu como saneadora da alma humana, como lembrete para o qual fomos criados. Não fosse a arte, seríamos apenas homens que contam moedas, como diz Exupéry no "O Pequeno Príncipe". Toda a diferença dos homens reside na grandeza da arte. É ela que toca nossos mais nobres sentimentos e nos deixa, de repente, com vontade de sermos melhores. Ouvir um Concerto de Bach, uma Sonata de Mozart, um Prelúdio de Chopin é tocar as estrelas, é sair do disse-que-me-disse cotidiano, é não se importar com nada além do lugar para onde a música nos transporta. A arte é quem ainda traz movimentação às camadas mais sobrenaturais da Terra, porque tudo o mais empobreceu, degenerou-se. Não fosse por ela talvez não tivéssemos nenhuma saída.
O amor também poderia ter sido outra grande arma contra a sedimentação humana. Mas o amor também se perdeu dentro de si próprio, tornando-se o labirinto mais complicado, misterioso e sofrido dos homens. De intacto mesmo, só restou a arte. Com sua eterna pureza, sua capacidade de tocar os pontos mais sensíveis de nossa alma, de saciar nossa dor e acordar nosso êxtase, ela nos fornece o alimento vital que os homens esqueceram de preservar ao longo dos tempos. A arte nos faz lembrar que fomos feitos para coisas maiores e nos aproxima da nossa verdadeira essência espiritual, tão esquecida no meio de tantas matanças, guerras, terrorismo e ausência completa de compaixão. Países abrindo as portas a povos de outros países que, prevalecidos dessa boa vontade, matam centenas de pessoas numa única noite. E por aí vai mostrando o que somos na realidade. Mas sempre existirá Bach com seus eternos concertos à espera de serem ouvidos e mudar a essência dos homens.
Hoje ouvi o Concerto nº 7, para piano e orquestra, de Bach, e experimentei uma emoção que me tomou por inteiro, misturada à gratidão por ele ter nascido, um dia, e criado obras tão grandes que serviram de ensinamento aos compositores posteriores. E compreendi que de tudo que a humanidade fez, a arte foi que prevaleceu como saneadora da alma humana, como lembrete para o qual fomos criados. Não fosse a arte, seríamos apenas homens que contam moedas, como diz Exupéry no "O Pequeno Príncipe". Toda a diferença dos homens reside na grandeza da arte. É ela que toca nossos mais nobres sentimentos e nos deixa, de repente, com vontade de sermos melhores. Ouvir um Concerto de Bach, uma Sonata de Mozart, um Prelúdio de Chopin é tocar as estrelas, é sair do disse-que-me-disse cotidiano, é não se importar com nada além do lugar para onde a música nos transporta. A arte é quem ainda traz movimentação às camadas mais sobrenaturais da Terra, porque tudo o mais empobreceu, degenerou-se. Não fosse por ela talvez não tivéssemos nenhuma saída.
O amor também poderia ter sido outra grande arma contra a sedimentação humana. Mas o amor também se perdeu dentro de si próprio, tornando-se o labirinto mais complicado, misterioso e sofrido dos homens. De intacto mesmo, só restou a arte. Com sua eterna pureza, sua capacidade de tocar os pontos mais sensíveis de nossa alma, de saciar nossa dor e acordar nosso êxtase, ela nos fornece o alimento vital que os homens esqueceram de preservar ao longo dos tempos. A arte nos faz lembrar que fomos feitos para coisas maiores e nos aproxima da nossa verdadeira essência espiritual, tão esquecida no meio de tantas matanças, guerras, terrorismo e ausência completa de compaixão. Países abrindo as portas a povos de outros países que, prevalecidos dessa boa vontade, matam centenas de pessoas numa única noite. E por aí vai mostrando o que somos na realidade. Mas sempre existirá Bach com seus eternos concertos à espera de serem ouvidos e mudar a essência dos homens.
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
15 de novembro - O Brasil antes e depois de República
Ó Pátria amada! Teu berço era uma vastidão de
selvas intocadas, crivadas de rios cristalinos e profundos lagos de águas
mansas. Opulenta de ouro e prata! Ninguém nasceu mais rica e livre do que tu.
Em tua face pura de menino travesso dançavam as fadas e os elfos ao som da
sinfonia dos pássaros e dos córregos. Nenhum país viu sol mais fúlgido nem
semelhante céu de anil. Éramos um povo heroico desafiando a própria morte para
te embalar em sonho intenso de amor e de esperança. Nenhum rumor de passos
inimigos turbava tuas noites eternas. Gigante pela própria natureza, belo e
forte eras, defendendo teu povo com tuas torres encrustadas nos montes. Rescendias
a flores silvestres misturadas a jasmim e alecrim. Teu corpo impávido e colosso
sobrepujava o continente onde nasceste. Ninguém te dominava. Conhecias apenas os
passos de uma nação que se aquecia nas fogueiras e caminhava solto pelas matas,
cabelo ao vento, pés descalços, o corpo nu. A fronte, coroada de ramos e penas coloridas,
fitava a glória do futuro. Nenhuma clava era mais forte que suas setas.
Depois, aportaram uns homens barbudos,
acompanhados de outros, vestidos de preto da cabeça aos pés, com algo
desconhecido pendurado no pescoço. Os primeiros cobiçavam nossas riquezas
minerais, o segundo ensinava os nativos a adorar duas varinhas cruzadas. Com
picaretas, os barbudos escavaram tuas serras até os ossos, deixaram tuas
vergonhas à vista e teus úteros dilacerados. Com golpes de facão tosaram tua
imensa cabelereira verde, tão densa e escura que se tornava negra aos pés do
chão, onde os raios solares não se atreviam a entrar. Tornaste-te prisioneira
de um país de além-mar e teu povo se tornou cativo. Desde então, empobreceste
até te tornar o que és. De mentira em mentira, de saque em saque, já não se
pode dizer que és a terra mais garrida, nem que teus campos têm mais vida. Hoje
somos um povo vencido, sem coragem de lutar até a morte. Fugimos à luta porque
nos faltam esperanças. A seara mais fértil do mundo nega o pão aos próprios
filhos. Onde havia fartura hoje impera a fome. Já não podemos te chamar terra
dourada porque teu trigo se tornou negro e amargo. Ainda assim te amamos. Não
temos esperança, mas não perdemos a fé.
Sonhamos que a chaga do teu peito seja cicatrizada por homens audazes
que amem teu chão e teu povo e faça renascer em nós o brado retumbante que te
deu a liberdade em breve instante, às margens de um riacho que transformaram em
lixo.
Ó Terra idolatrada! Como dói o peito de
quem te escreve! Como te salvar dos ávidos de poder, do que se matam por mais um pedacinho de ti, dos que empederniram o coração ante o
clamor das massas, dos indiferentes à fome dos pobres, dos que passam ao largo da
ignorância dos analfabetos, dos que não enxergam o abandono da infância, a carência
dos jovens, o desamparo da velhice? Abri os olhos, vós que governais este povo que instaurou a forma republicana presidencialista, derrubando a monarquia e pondo fim à soberania dos Bragança. Se não podeis fazer nada, pelo menos deixai-nos voltar ao tempo dos índios,
saciados, usando tanga no meio da mata virgem, adorando o sol e a lua e
entoando canções em tupi-guarani. Já que não temos nada, dai-nos o direito de
voltar à inocência.
sexta-feira, 30 de outubro de 2015
Mister Blue
Numa
cidade localizada em algum lugar deste planeta, numa noite quente de verão e de
estrelas rutilantes, nasceu uma criança do sexo masculino a quem deram o nome
de HélderSebastião, em homenagem
a um dos maiores santos nascidos na mesma terra.
Com o
passar dos anos, o garoto foi demonstrando uma personalidade conciliadora, um
jeito próprio e pouco comum de permanecer atento às necessidades dos que o
rodeavam. Se, por exemplo, um dos irmãos não sabia a lição da escola, ele
deixava de lado suas brincadeiras favoritas para ajudá-lo. Se os pais se
desentendiam, ele encontrava um meio de dirimir as rusgas entre os dois, ora os
estimulando a falarem sobre eles mesmos, ora ressaltando que eram os melhores
pais do mundo e que os filhos se sentiam felizes por tê-los como exemplos. Por
essa época ele já tinha uns doze anos. Sempre que se apresentava uma situação
em que alguém necessitasse de algo, ele surgia e, à sua maneira, tentava
dirimir a aflição do outro. Se um colega de escola não podia comprar um livro
para estudar as lições, ele tirava de sua mesada o pouco que ganhava, ia à
livraria e explicava ao livreiro que só possuía aquela quantia de dinheiro para
resolver o problema de um colega. Às vezes, ele permanecia na livraria uma
tarde inteira, tentando convencer o homem a vender o livro em prestações que
ele próprio assumia o compromisso de pagar. Quando seus argumentos não davam
resultado, ele ia a uma gráfica, mandava copiar as principais lições do livro
para si e oferecia o original para o colega.
Hélder
estava sempre de bem com a vida, e quando alguém lhe perguntava como andavam as
coisas, ele respondia: “tudo azul”. O professor de inglês da escola observou
que sempre que alguém ou ele mesmo indagava se ele estava bem, a resposta
era sempre a mesma: tudo azul. Daí começou a chamá-lo de Mr. Blue, apelido que
os demais professores e alunos da escola adotaram com carinho, embora ele não
tenha se envaidecido com o codinome, porque a bondade para ele era algo
natural, sem afetação.
Mr. Blue
sempre tinha um tempinho, depois da aula, para a explicação de uma matéria a um
colega, (embora a fome gritasse forte), ou para consolar um garoto que chorava
num canto da sala porque lhe haviam roubado os lápis.
Assim,
nosso jovem garoto atravessou a adolescência e completou quinze anos. Era um
rapaz desinibido, forte, de passos largos, os pés um pouco abertos,
jogando o corpo de um lado para o outro, o andar típico dos que vivem em paz
com a vida.
O rapaz
não era bonito nem feio, mas sua alma parecia iluminá-lo por fora e seus
pequenos senões físicos se obscureciam quando ele sorria. Todos o amavam. Em
casa era o preferido, na escola o mais procurado, entre os amigos o mais
festejado.
Mr. Blue
via os defeitos dos seus semelhantes como se passasse por dentro de uma nuvem,
sem julgar coisa alguma, pois sua noção de humanidade não incluía julgamentos
sobre os erros do próximo. Enfim, ele compreendia quando um amigo não lhe
pagava o dinheiro emprestado ou lhe negava a palavra como forma de se defender
da trapaça. Parece que ele havia nascido para compreender tudo e todos.
Mr. Blue
era um dessas pessoas que resguardaram a inocência original, sendo incapaz de
uma maledicência ou de uma grosseria. Às vezes, algum gaiato o chamada de
poeta, profético, iluminado. Mas ele não levava em consideração nada do que
diziam dele, porque sem nenhum esforço ele era assim. Os pais tinham orgulho
dele, sempre cordato e jamais reclamando de mais uma tarefa dentro de casa,
como cuidar dos irmãos menores, enquanto a mãe preparava o jantar.
Lúcia, a
irmã de quatro anos, não suportava ficar sem a presença de Hélder. Vivia em seu
encalço, pedindo-lhe os braços, querendo colo e só queria comer quando ele
estava perto. Se ele se afastava, ela saía por dentro da casa repetindo seu
nome até encontrá-lo no quarto dos fundos, brincando com seus jogos
eletrônicos. E continuando a jogar, ele vigiava a irmã para evitar que ela não
aprontasse alguma. Era um olho no jogo e o outro em Lúcia.
Aos vinte anos entrou na faculdade de psicologia, para compreender melhor a alma humana. Aos vinte e cinco casou-se com uma colega e tiveram um filho chamado Marcos.
Aos vinte anos entrou na faculdade de psicologia, para compreender melhor a alma humana. Aos vinte e cinco casou-se com uma colega e tiveram um filho chamado Marcos.
A cidade onde M. Blue nascera, crescera e se
casara, era uma sociedade comunitária. Todos haviam aprendido um pouco a dar,
trocar, ajudar e resolver os problemas uns dos outros.
Mr. Blue terminou
a faculdade e foi convidado para trabalhar numa clínica e fazer o que mais
gostava: ajudar as pessoas. Agora, com tantas técnicas, era-lhe mais fácil
ouvir e aconselhar quem dele necessitasse. Também dava assistência psicológica
a alunos de uma escola, três vezes por semana.
Tudo
parecia perfeito na vida desse rapaz.
Certo dia,
o Diretor da escola, Sr. Jarbas, pediu-lhe para comparecer à diretoria, no
final do expediente. Às dezoito horas, ele pegou seus livros, seu paletó e se
dirigiu ao gabinete do diretor.
O Sr. Jarbas lhe explicou que infelizmente o
assunto não era agradável de tratar, mas que se fazia necessário esclarecer.
Meio confuso, o rapaz perguntou de que se tratava.
— É algo que andam falando de você, Hélder.
— Mas, o que é exatamente?
— Eu não posso dizer, fui instruído apenas para lhe dizer que você não deverá frequentar a escola até que tudo fique esclarecido.
— Mas de que estou sendo acusado? Tenho direito de saber.
— Vá para sua casa e eu resolvo tudo por aqui.
— O senhor não acha que eu tenho direito de saber do que se trata?
— As coisas estão muito confusas no momento, Hélder. Nem sei por onde devo começar a enfrentar esse episódio. Só sei que sua presença na escola iria tumultuar mais ainda as coisas. Por isso lhe peço que se dê um tempo, fique com sua família.
— E o que o senhor sugere que eu diga em casa? O que devo dizer à minha mulher, ao meu filho, à minha família?
Diga-lhe que está com estafa e necessita de repouso.
— É algo que andam falando de você, Hélder.
— Mas, o que é exatamente?
— Eu não posso dizer, fui instruído apenas para lhe dizer que você não deverá frequentar a escola até que tudo fique esclarecido.
— Mas de que estou sendo acusado? Tenho direito de saber.
— Vá para sua casa e eu resolvo tudo por aqui.
— O senhor não acha que eu tenho direito de saber do que se trata?
— As coisas estão muito confusas no momento, Hélder. Nem sei por onde devo começar a enfrentar esse episódio. Só sei que sua presença na escola iria tumultuar mais ainda as coisas. Por isso lhe peço que se dê um tempo, fique com sua família.
— E o que o senhor sugere que eu diga em casa? O que devo dizer à minha mulher, ao meu filho, à minha família?
Diga-lhe que está com estafa e necessita de repouso.
— O senhor
está pedindo que eu invente uma história para enganar minha família? Quero a
verdade, Sr. Jarbas, apenas a verdade.
Estou sendo acusado de alguma coisa. Quero saber do quê.
— Um
aluno ou aluna andou se queixando de algumas atitudes de sua parte.
— Que
atitudes? Quem falou?
— Não me
deram permissão para revelar o nome da pessoa.
— O que
essas pessoas falaram?
— É
apenas uma pessoa.
— O que
essa pessoa disse?
— Vá para
casa rapaz, e espere a decisão do conselho.
— Todo
mundo sabe o que houve só eu não? Acha isso justo?
— Depois
que nos reunirmos e tomarmos uma decisão você será chamado.
Mr. Blue
foi para casa. Pela primeira vez em sua vida ele estava pesaroso. Não sabia o que dizer à sua mulher, ao filho
de oito anos e aos seus pais.
Falou
primeiramente com a mulher Leda sobre a estranha conversa
com o Sr. Jarbas. Não pode lhe dar detalhes porque não sabia de nada. Disse
apenas que o acusavam de algo, mas ele nada tinha feito de errado. Sua mulher o ouviu e disse que pela manhã
iria à escola saber o que eles não esclareceram. Hélder avisou que não seria de
bom tom, pois ele fora avisado de que deveria se manter longe da escola.
— Você
brigou com algum paciente, Hélder?
— Não, você sabe que não brigo com ninguém;
— O Sr. Jarbas comentou que falaram coisas a meu respeito.
— Que tipo de coisas?
— Não sei. Não tenho a mínima ideia. Estou apenas repetindo o que ele disse.
— Não, você sabe que não brigo com ninguém;
— O Sr. Jarbas comentou que falaram coisas a meu respeito.
— Que tipo de coisas?
— Não sei. Não tenho a mínima ideia. Estou apenas repetindo o que ele disse.
— Hélder,
o mundo enlouqueceu? Como podem fazer isso com um homem como você, que só
ajuda, só ouve, só aconselha e vive resolvendo problemas de todo mundo? Amanhã faremos uma reunião aqui em casa: seus
pais, seus irmãos, eu e o Marcos.
— O
Marcos?
— Sim,
antes que ele saiba no colégio o que estão dizendo do pai dele, é melhor lhe
prevenir.
— Tem
razão. Você chama todo mundo, então.
No dia
seguinte toda a família de Hélder estava reunida. Leda tomou a palavra e
explicou o que não sabia direito, mas tudo indicava que haviam feito uma coisa
horrível com seu marido. E o pior: não explicaram mais nada.
— Coisas
de que tipo? O que eles comentaram? Perguntou aflito o pai de Hélder:
— Era
essa a
maneira de agradecer por tudo que ele faz? De quem partiu esse absurdo?
— Não me
informaram nada, mãe. Apenas disseram que eu permanecesse distante da escola
por uns tempos. Acho que até ser apurado.
— Quem vai
apurar?
— A
princípio, os diretores da escola. É tudo que sei.
— Você tem
ideia de quem possa ter começado essa história?
— De jeito
nenhum. Ninguém me informou nada. Sei do caso tanto quanto vocês.
—
Eu os
chamei aqui, disse Leda, para que tomemos uma decisão e façamos alguma coisa.
— Vamos dar
parte à polícia antes que eles deem.
— Acho que
seria precipitado. Disse Hélder. É como pôr a carroça antes dos bois. E se for
uma bobagem?
— Então, o
que podemos fazer?
— Eu vou
lá falar com o diretor da escola, disse o pai de Hélder. Vou pedir para tomar
parte dessa reunião que vai haver.
— Pai, só
pode participar dessa reunião os membros do colegiado.
— Então
vou falar com o diretor dessa escola. Alguma coisa tem que ser feita.
— Acho
melhor esperarmos em que vai dar. Então tomaremos as decisões. Ficaremos de
sobreaviso. Nada podemos fazer por enquanto. Eu e Leda achamos que vocês tinham
que tomar conhecimento do que está se passando.
— Então, só
nos resta esperar. Você ficará bem, filho? Perguntou a mãe de Hélder.
— Não sei
ainda como ficarei, mãe. A coisa toda é muito absurda e repentina. Estou atordoado.
Não sei o que pensar disso tudo.
— Vá
descansar, filho, e procure não pensar muito sobre essa história. Eles mesmos
vão chegar à conclusão de que cometeram um erro. Você vai ver.
Despediram-se
e foram para suas casas. Mas Hélder não conseguia dormir. E, pela manhã, havia
chegado à conclusão de que deveria ir à escola, embora desacatando as ordens
recebidas.
Tomou seu
café matinal, arrumou-se, pegou sua pasta de livros e se dirigiu ao
estabelecimento escolar, mesmo que não fosse dia de atendimento aos alunos.
Ali chegando, não avistou nenhum dos seus
colegas de magistério. Saiu procurando por eles e encontrou todos na sala da
diretoria, a portas trancadas. Soube que eram eles porque escutou suas vozes.
Bateu na porta e um deles veio ver quem era. Ao se deparar com Hélder
perguntou-lhe se ele havia esquecido de que não deveria comparecer à
escola. Hélder o empurrou para um lado, entrou
na sala e se dirigiu aos colegas:
— Estou aqui
porque tenho direito de saber o que estão dizendo de mim, e quem disse. Vocês
devem compreender que minha situação é difícil: estou sendo acusado de algo que
não sei o quê, por alguém que não imagino quem seja. Não acho justo fazer isso com um ser humano. É
crueldade. Pela primeira vez na vida estou diante de sentimentos humanos que eu não conhecia. Estou
mais perplexo do que vocês.
— Mesmo
assim, professor Hélder, permaneça fora do âmbito desta escola até tudo ser
resolvido. Vamos conversar com a pessoa que fez a denúncia, depois ouviremos o
senhor.
Hélder
retornou à sua casa, mais triste e mais intrigado. Depois do almoço ele foi à
clínica onde trabalhava.
Três dias
depois ele recebeu um telefonema informando-lhe que deveria comparecer à escola
na manhã do dia seguinte. E para lá ele foi.
Encontrou
pais de alunos e todo o corpo docente reunidos na sala da diretoria. Ao entrar
no recinto sentiu sobre ele olhares hostis. A diretora fez uso da palavra para
explicar a razão de estarem reunidos. Uma aluna havia dito que o professor
Hélder havia mostrado suas partes íntimas a ela...
— Pois
chame essa aluna aqui e eu quero ver se ela vai repetir esse absurdo, disse
Hélder.
Não
podemos pressionar a criança, professor. Vamos pedir as autoridades policiais
para fazerem uma investigação. Então a menina será ouvida e, posteriormente, o
senhor.
— Os
senhores acreditam que sou capaz de uma atitude dessas?
— Vamos
esperar o resultado da investigação, professor. Até lá permaneça distante da
escola. É uma ordem.
Todos
saíram e Hélder permaneceu sentado. Esperou o retorno da diretora e lhe
explicou que tudo aquilo não passava de um absurdo e que ele não estava sabendo
ligar com a situação. Sentia-se deprimido e magoado com todos por imaginarem
que ele fosse capaz de fazer tal coisa. A diretora ponderou que os fatos tinham
de ser apurados, para seu próprio bem. Tudo o que ele tinha a fazer era
esperar.
Hélder
saiu da sala, mas não se sentia com ânimo de voltar para casa, nem ir à clínica,
nem ouvir o telefone tocando e sua mulher tentando acalmar seus pais. Foi
caminhando sem rumo e se deparou com uma praça onde havia alguns bancos
desocupados. Sentou-se num deles e ficou mergulhado em pensamentos sombrios.
Pela primeira vez em sua vida parecia estar perdendo a crença na humanidade.
Experimentou uma espécie de mágoa dirigida a todos e a ninguém especificamente.
Estava confuso, seus sentimentos feridos faziam doer sua alma. Dúvidas
começaram a inundar seu ser. Se o erro
fosse esclarecido, ele teria condição de continuar a olhar cada um dentro dos
olhos, sem ver a perfídia em todos? E se, mesmo depois do caso resolvido, ele
não pudesse ser o mesmo de antes? E os outros? Acreditariam no resultado da
perícia ou sempre haveria de pairar uma dúvida? Uma calúnia deixa sempre um
rastro de incertezas, um lodo, uma podridão naquele que foi caluniado.
Hélder pensou em desaparecer, em fugir para
outro Estado, morar no Amazonas junto com os índios, nunca mais vez nenhum
daqueles rostos que vira àquela manhã, cada um deles expressando uma sentença.
Não poderia suportar viver assim. Sua vida estava acabada, sem escapatória.
Assim pensando, lágrimas começaram a cair de seus olhos, enquanto o horror
crescia dentro dele. Nunca mais ele seria o mesmo. Nunca mais olhariam para ele
sem aquela suspeita corrosiva. O que Leda pensava dele, lá no fundo de sua
alma? Como ele poderia saber? Antes sabia tudo sobre ela, bastava um olhar e
tudo estava ali, dito, esclarecido, sem suspeitas. Essa história o fizera perder
as melhores coisas da vida: a confiança que depositaram nele e a fé que o fazia
se atirar de corpo e alma para ajudar o outro. Era como se ele estivesse
morrendo, à medida que a podridão humana invadia seus poros, com a fúria de uma
avalanche.
Hélder
passou a tarde no banco da praça e não sentia nenhuma vontade de ir a qualquer
lugar. Sua casa perdera o encanto, o
brilho. Era agora um espelho quebrado. Dirigiu-se
a uma igreja na tentativa de conversar com um padre, mas encontrou a igreja
fechada. Não queria voltar para sua casa, nunca mais. Todos os seus sonhos
morriam um depois do outro e ele se viu como uma árvore oca, que já não
serve
para nada.
Um imenso
desespero se aposseou dele, certo de que dali e cem anos as pessoas ainda o veriam
como um canalha. Não poderia suportar isso. Faltava-lhe a coragem de ser bom
novamente. Deveria nunca ter compreendido ninguém. Se crucificaram um homem que
viera à terra apenas para trazer o bem à humanidade, o que não fariam com ele,
pobre mortal, os amigos lhe virando as costas, passando por ele como se não o
conhecesse?
Hélder
levantou-se do banco e continuou sua jornada sem rumo. Lembrou-se do mar e foi na
direção
dele. Já era noite, ele não sentia forme, nem cansaço. Só um imenso vazio. Queria
continuar andando, andando, sem voltar jamais. Nunca mais queria ver um
professor ou um aluno daquela escola. Iria em direção ao mar porque isso o
fazia se distanciar do seu mundo.
Chegou à praia e ficou ouvindo o rumor das
vagas. A noite estava escura, sem luar, sem estrelas. Tirou os sapatos e molhou
os pés. A água estava cálida, acolhedora. Nada o recriminava ali. Pelo
contrário, as ondas o abraçavam como uma mulher desejosa de ser amada. Mr. Blue
experimentou uma enorme vontade de se envolver nas ondas, deitar-se nelas, ir para
onde elas quisessem levá-lo. Em seu desespero desejou atravessar
o oceano e esbarrar no velho mundo, como um mero desconhecido ou alguém que
acabara de nascer. A esse pensamento seu corpo foi penetrando na escuridão do
mar. Caminhou ainda mais. Ele não sentiu nenhum medo. A água batia-lhe na
cintura. Avançou mais. Agora, ela alcançava seu dorso. Ele queria mais.
Caminhou por entre ondas turbulentas sem olhar nem uma vez para trás. Seu rosto inundou-se de água salgada. Ele recebia
a aspereza do mar como um outro carinho. Seu destino era seguir. Talvez encontrar do outro lado o oposto do que estava
vivendo. As águas salgadas lhe molharam o rosto. Ele prosseguiu. O mar era uma
imensa cama e ele se sentia cansado demais para retornar a algum lugar. De
repente, ondas gigantescas tragaram seu corpo e ele se deixou ir para as profundezas
escuras. Experimentou uma indizível paz. Tudo ficara para trás. Mr. Blue não
mais existia. Sob as ondas havia apenas Hélder.
No dia seguinte, o corpo de Mr. Blue ainda não tinha surgido das profundezas que o haviam tragado e já se desvendava o absurdo de uma história inventada por uma criança tomada por uma crise de ciúmes.
No dia seguinte, o corpo de Mr. Blue ainda não tinha surgido das profundezas que o haviam tragado e já se desvendava o absurdo de uma história inventada por uma criança tomada por uma crise de ciúmes.
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