domingo, 14 de fevereiro de 2016


                                        BÁRBARA
 

    Meu nome é Bárbara. Tenho trinta anos, mal casada, e acabei de enterrar meu único filho. Estou transida de dor, respirando dentro de um tubo escuro como a morte, sem qualquer esperança, sem acreditar em coisa alguma. Minhas palavras não são dirigidas a amigos, pois não os tenho. Nem a minha mãe nem ao meu pai. Ela era uma tirana, e ele, um alcóolatra inveterado. Também não me dirijo ao meu Ex, pois enquanto ele vivia comigo jamais partilhou de minhas angústias. Tampouco falo com os donos das igrejas, eles apenas escutam o próprio umbigo. Os homens que cruzaram minha vida só deixaram um laivo de dor e muito vazio. Meus vizinhos são peças estranhas que, muitas vezes, viram o rosto para o outro lado, quando passo. Talvez não gostem de mulher divorciada, e eu estou me lixando...

   O único ser que amei no mais profundo de minha alma foi você, filho. Amei seu primeiro choro, seu primeiro sorriso, seus primeiros passos, suas primeiras perguntas, seus abraços, seus olhos de imensa pureza. Você me fez viver meu conto de fadas. Acreditei em tudo em que não mais acreditava só para lhe oferecer um pouco da alegria que eu não possuía. Escondia de você, meu amor, a crueza do meu íntimo devastado, porque queria que você acreditasse na vida, em seus avós, em mim, em seu pai fujão e nos amigos que um dia teria. Sim, é verdade que representei para você.  Por isso, você jamais me viu chorar, jamais soube como eram tristes meus sorrisos, nem que eu carregava um fardo de desencantos e descrença em toda a humanidade. O que vejo ao meu redor são traições, desavenças por quinquilharias, roubos astronômicos dos governantes a quem confiamos o leme do país. Promessas de palanques jamais cumpridas, enriquecimentos pessoais, enquanto o povo conta os centavos, quando os tem, a fim de sobreviver. Mas você, filho da minha alma, encantou-me durante os seis anos em que viveu ao meu lado. Suportamos com bravura as asperezas decorrentes do inesperado abandono de seu pai. Tínhamos um ao outro e isso mitigava o sofrimento causado por ele. Quantas vezes tive que sustentar as lágrimas e o ódio para lhe explicar que algumas pessoas vêm e vão, como cometas a cruzar o firmamento. E que, mesmo assim, a vida podia ser maravilhosa... Afirmava-lhe que eu jamais deixaria você, nem que fosse pelo rei da Escócia. Naquele instante seus olhos brilhavam e você indagava quem era esse rei. Então eu contava mil histórias sobre esse ser imaginário, dizia que era muito belo e rico, mas que se ele me oferecesse todas as joias de seu reinado, colocasse uma coroa de diamantes sobre minha cabeça, eu, ainda assim, preferia você. Então você sorria, comprazendo-se com minha escolha. Gostava de vê-lo em sua roupinha de marinheiro, ou tomando banho de chuva, ou arrastando pela casa seus brinquedos barulhentos. Sim, filho, você valia mais para mim do que todos os tesouros da terra. Meu amor por você era maior que os mares e brilhava mais que as estrelas do firmamento. Você não duvidava de mim. Acreditava em tudo o que eu lhe dizia, porque nunca o traí, nunca o abandonei nem deixei de escutar seus queixumes de criança.

   Agora, sem você, estou perdida. Sinto que minha vida acabou no momento em que o deixei sob a pedra fria. Estou sozinha na casa onde vivemos e assim posso gritar, curvar-me até o chão, arrancar os cabelos, sentir o coração se despedaçando dentro do peito e pensar: pronto. É agora que me vou também. Paro no meio da casa, descabelada, os olhos fitos no nada, as mãos crispadas à espera que a morte tenha piedade de mim. Espero cinco, dez, vinte minutos e nada. Então recomeço a gritar, a rasgar  a roupa, a morrer por conta própria, matando tudo que possa ter vida dentro de mim. Nego-me água, comida, sono e esmago qualquer sentimento de redenção que possa me retribuir um pouco de paz. Nem suas lembranças, filho, me servem de nada. Não me deixarei pensar em você lindo, saudável, saltando na cama, resmungando para tomar banho, os olhos quase fechados e você teimando em não dormir para não perder nada da vida. Acordando bem cedo e vindo para minha cama me despertar com beijos. Não! Não pensarei em nada disso. Não tenho mais memória, sou como aquelas múmias que eu lhe dizia que existiam no Egito. Há uma porção de panos me envolvendo a cabeça, me cingindo o peito, os ossos da bacia, as pernas, os pés. Dentro de mim estou oca. Tiraram-me tudo porque me tiraram você.

   Não posso perguntar à vida a razão disso tudo porque a vida não existe. É pura ilusão. Não posso perguntar à humanidade porque ela está mais interessada na sua própria sobrevivência, no que vai comer no almoço e digerir no jantar.  Por isso decidi perguntar ao único que dizem saber tudo, aquele que fez este e os outros mundos, fez meu corpo e o seu, levou o seu para o céu e deixou o meu no inferno. Ele que, segundo dizem, conhece todas as respostas, todos os nossos pensamentos. É com ele que quero falar antes que a loucura tome conta de mim.  Mas... onde ele se encontra? Onde? Onde?... Dizem que dentro de mim, mas me perdi de mim mesma...

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